Imagem da matéria: DAOs, a Justiça e a tentativa de remover o elemento humano na descentralização
Foto: Shutterstock

Em julho de 2018, um projeto blockchain chamado Kleros organizou uma competição chamada “Doges on Trial” (ou “Cachorros sendo Julgados”), pedindo que participantes enviassem imagens de filhotinhos fofos da raça shiba inu, conhecidos como “doges”, para uma espécie de biblioteca curada de memes.

Kleros pediu por fotografias de shiba inus, mas também incentivou participantes a contestarem envios duvidosos por meio de seu software de votação em blockchain.

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Qualquer pessoa que conseguisse enviar a imagem de um gato ganharia 50 ETH (ou cerca de US$ 25 mil na época).

A ideia era testar os limites do software descentralizado de arbitragem da Kleros e sua capacidade de manter inúmeras pessoas dispersas e anônimas alinhadas com um só objetivo (o de criar uma biblioteca de memes de doge).

“Essa recompensa de 50 ETH era uma forma de nós testarmos a robustez criptoeconômica do sistema Kleros, como resistência a tentativas de suborno e outros vetores de ataque”, explicou a Kleros um ano depois.

Os problemas começaram quando um participante chamado Ricky conseguiu obter a imagem de um fofinho gato alaranjado (que, de costas, parece exatamente um shiba inu) à lista sem contestação. Parecia ser uma vitória certa e Ricky obteve sua recompensa.

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No entanto, Coopérative Kleros, a entidade francesa jurídica por trás da Kleros, emitiu uma reconvenção por meio da própria interface da Kleros.

Citando uma tecnicalidade na política oficial de pagamentos, Kleros argumentou que o envio não era qualificado. A adjudicação da questão em uma reunião entre jurados da Kleros a solucionou a favor da Kleros e Ricky ficou sem nada.

Aos críticos da Kleros, o resultado foi uma ironia absurda: a Kleros havia criado a competição para saber se seria possível enganar sua tecnologia por um prêmio.

Quando alguém a enganou com sucesso, Kleros confiou em uma má interpretação de suas políticas e um sistema de arbitragem foi manipulado ao seu favor (disseram os críticos) para negar ao ganhador seu devido prêmio.

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Não foi um sistema mais justo, e sim a replicação do mesmo elemento humano e corrupto que projetos como Kleros estavam supostamente tentando substitui-lo com algo melhor: a descentralização!

O problema enfrentado pela Kleros (como manter o alinhamento de um grupo distribuído e sem liderança) é uma crescente preocupação no mundo cripto.

Desde então, organizações autônomas descentralizadas (ou DAOs, na sigla em inglês) que operam políticas baseadas em códigos e camadas sociais e pessoas se tornaram bastante populares e “o caso do doge de 50 ETH”, como é chamado, se tornou uma espécie de fábula conforme desenvolvedores tentam desenvolver sistemas que funcionam melhor.

Em termos gerais, estão tentando solucionar o antigo “problema do oráculo” que surge quando uma entidade descentralizada que depende de contratos autônomos se depara com complicações do mundo real.

“Digamos que você queira me contratar para desenvolver um site para você”, disse Jordan Teague, um advogado do Sul da Califórnia que também trabalha como árbitro da plataforma blockchain LexDAO.

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“Você bloqueia um ETH em um contrato e tudo funciona bem, você entrega o que eu quero e os fundos são liberados.”

Mas o que acontece se houver uma disputa sobre a possibilidade de o trabalho ser bom?

Alguns dados podem ser avaliados, de forma confiável, por um contrato autônomo (como o preço de um ativo, a quantia de fundos em um tesouro), mas a avaliação qualitativa que envolve a criação de um site ou a imagem de um gato que parece um cachorro, não pode ser feita.

Nesse caso, você precisa recorrer a humanos, que podem oferecer algo que computadores não conseguem: mediação interpessoal.

É aí onde entram pessoas como Teague.

Teague é um dos 18 “engenheiros jurídicos” que trabalham com a LexDAO, que fornece serviços experimentais de resolução de conflitos para DAOs que se deparam com disputas.

Quando um contratante concorda com os termos de pagamento de uma DAO, LexDAO (por meio de seu contrato autônomo “LexLocker”) se oferece para armazenar os fundos em questão sob sua custódia até o trabalho ser finalizado.

Se surgir qualquer disputa sobre a qualidade do trabalho, um júri de imparciais engenheiros jurídicos irá avaliar as afirmações de cada parte para mediar a situação, geralmente no Discord.

Os fundos só serão liberados quando o júri emitir seu veredito, que é vinculativo (às vezes, a liberação dos fundos é fracionada conforme algumas etapas de um projeto são atendidas). LexDAO toma sua porcentagem dos fundos mantidos no contrato se precisar se envolver.

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Como isso ajuda? Uma das coisas que gerou o fiasco da Kleros foi o júri anônimo, mal treinados e não confiáveis.

Apesar de o ponto de desenvolver um sistema desses seja, geralmente, se livrar da necessidade de confiança e diferir princípios baseados em códigos (“o código é a lei”), humanos ainda não podem ser removidos quando o assunto é o problema do oráculo.

Este ano, Pranay Modi, membro da LexDAO, escreveu um longo texto sobre “o caso do doge de 50 ETH” e notou que muitos dos “juristas” amadores ofereciam avaliações totalmente simplistas sobre o caso.

Grande parte da confusão girava em torno da política de pagamentos, principalmente em uma cláusula que estipulava que “para que seja considerada válida, uma imagem deve claramente mostrar um cachorro ou um gato” e que “imagens com cachorros ou gatos escondidos não seriam consideradas válidas se um observador comum não fosse capaz de vê-los sem ajuda (como uma imagem de pouquíssimos pixels de um cachorro não seria considerada válida, pois um observador não conseguiria vê-lo à plena vista)”.

Acontece que a cláusula era complexa demais para que um círculo de amadores remotamente distribuídos a considerasse de forma convincente.

Um jurado, que votou a favor da Kleros, escolheu a palavra “escondidos” na política de pagamentos para se referir à espécie do animal em vez do animal em si; a diferença entre um gato que parece um cachorro e um gato que é difícil de observar na imagem.

Mas Modi argumenta que a política de pagamentos nunca afirmou que uma recompensa seria dada para uma imagem que era claramente a de um gato; isso ia de encontro ao propósito da tarefa, que era tentar enganar um observador a achar que um gato era um cachorro.

Outro jurado pareceu incapaz de até mesmo entender a premissa da competição. “Isso é claramente um doge”, afirmou o jurado. “As pessoas podem ter sido enganadas, mas é um jogo justo.”

Modi mencionou algo ainda mais alarmante: para participar do experimento da Kleros, jurados tinham de alocar uma certa quantia de PNK, o token nativo da Kleros.

Claramente, não eram partes influenciadas, mas eram pessoas financeiramente investidas no sucesso daquela plataforma que estava em disputa!

Metaverso, conheça a vida real

De certa forma, a Kleros teve sorte: Ricky cedeu à regra. Mas, geralmente, essas tretas descentralizadas viram disputas jurídicas no mundo real e participantes recorrem a tribunais tradicionais.

Um exemplo é Aragon, um popular tribunal blockchain que tenta incentivar jurados a fazerem staking antes da votação, uma porção da minoria.

Aragon afirma que motiva jurados a pensarem bastante, apesar de ser possível argumentar que encoraja uma espécie de pensamento jurídico em grupo.

Em 2021, o Aragon ofereceu uma bonificação ao Autark, um projeto que desenvolve ferramentas para DAOs. Mas Aragon decidiu não dar a quantia completa ao Autark, afirmando que o projeto havia feito um trabalho ruim.

A disputa não finalizada não no próprio tribunal blockchain da Aragon, e sim em um tribunal suíço. Alegadamente, o Aragon tinha receio de que qualquer vitória em um tribunal blockchain poderia ser rediscutida judicialmente e lutou sem fim.

É algo que faz você questionar: Qual é o ponto de desenvolver esses tribunais blockchain se existe tão pouca fé neles que as pessoas apenas recorrem ao sistema tradicional?

Muitos tipos de blockchain acham que o sistema jurídico existente é ruim, mas é difícil apresentar uma alternativa em blockchain se a rota tradicional ainda existe.

“Pensamos muito sobre essa questão”, disse Teague. “Devemos seguir as regras que outros tribunais seguem ou criar as nossa próprias regras?”

Teague afirma que uma possível resposta a essa pergunta é a Lei Federal de Arbitragem dos EUA, que permite que um contrato delegue a resolução de quaisquer conflitos a um árbitro independe; um tribunal irá apoiá-lo se for considerado “razoável” (ou, em alguns casos, não razoável).

Uma política estipulada por uma DAO, em um caso como esse, realmente seria juridicamente apoiada, contanto que não fosse totalmente absurda.

Teague a imagina como uma espécie de novo sistema jurídico para o “metaverso”, distinto do ainda legalmente sancionado pelo sistema tradicional de justiça. No entanto, teria de levar em consideração a possibilidade que os membros de uma DAO estão espalhados pelo mundo.

Para obter um reconhecimento mais cortês, você talvez queira ir ainda mais longe.

Em 2021, o estado americano de Wyoming aprovou uma lei, concedendo status jurídico a DAOs, dado que especificam a dimensão do envolvimento humano em sua estrutura organizacional e identificar cada contrato autônomo relevante nos documentos de incorporação.

Houve discordância sobre a lei, que exige que contratos autônomos sejam “atualizados” ou “modificados”, basicamente significando que precisa haver um certo nível de centralização, o que não é ideal para uma DAO.

O Tribute Labs (anteriormente conhecido como OpenLaw) desenvolveu uma DAO chamada The LAO (um trocadilho com a palavra “law”, que significa “direito” em português) que visa acrescentar um pouco mais de nuance, apesar de também ter agido com cautela: The LAO está registrada no estado de Delaware e só está disponível para investidores qualificados (pessoas com um patrimônio líquido de pelo menos US$ 1 milhão).

Senão, existe o risco de os tokens da LAO entrarem em conflito com leis de valores mobiliários.

A ideia inteligente do Tribute Labs era desenvolver uma linguagem única de sinalização que toma um contrato jurídico padrão e reduz sua linguagem ao tipo de dado que pode ser introduzido em um blockchain (legível por máquinas e compatível com contratos autônomos).

Isso indica o melhor de dois mundos: um contrato governado por código e executável nos tribunais.

Aaron Wright, fundador do Tribute Labs, disse que isso é importante pois, a falta de desenvolvimento de um júri de inteligência artificial supremamente poderoso, o tribunal humano sempre será necessário.

“Não podemos desautomatizar humanos”, afirmou Wright. “Existem muitos ativos valiosos no mundo real e estamos perguntando: Como se conectar a eles?”

A ideia do Tribute Labs, acrescentou ele, é desenvolver lentamente a aceitação sem a abordagem comum de startup de se mover rapidamente e atrapalhar as coisas. É similar à abordagem da Coinbase com reguladores, mas aplicada às DAOs e à névoa em torno delas.

O MetaCartel Ventures, uma DAO que investe em projetos da Ethereum, oferece uma versão criativa do design do Tribute Labs chamada de “Grimoire”, um “pacto de membros” nomeado em homenagem a um livro de feitiços do jogo Dungeons & Dragons.

Gabriel Shapiro, advogado da DAO, conseguiu escrever conceitos jurídicos e familiares em termos relacionados à fantasia.

No whitepaper do MetaCartel Ventures, membros da DAO são categorizados como Duendes ou Magos, cada um com seu título jurídico peculiar sob a estrutura da sociedade limitada.

Uma cláusula caracteristicamente bizarra estipula que “pessoas que são ‘investidores qualificados’ sob os testes de ativos líquidos ou de renda da Norma 501(a) da Regulação D podem se tornar ou Magos ou Duendes, conforme desejarem, segundo a Norma 506(c)”.

Shapiro também conseguiu eliminar um dos requisitos fundacionais do documento de Delaware: empresas têm “responsabilidades fiduciárias” a seus funcionários como concordam em agir a favor de seus melhores interesses financeiros.

Remodelou-a em termos da função “ragequit” da DAO, que permite que membros saiam com sua parte do tesouro quando quiserem.

Imagem do whitepaper do MetaCartel Ventures (Imagem: GitHub)

Wright, tangencialmente envolvido no Grimoire, notou que tribunais americanos oferecem uma quantidade surpreendente de flexibilidade quando o assunto é obrigações fiduciárias, que está em benefício das DAOs.

“Você está permitido a abdicar de obrigações fiduciárias”, disse. “O que você não pode abdicar é de um dever de boa-fé e um acordo justo, ou seja, você não pode ser um sacana.”

Advogados blockchain vão continuar sonhando com maneiras de transformar o mundo material em algo palatável para computadores. Mas algo já ficou bem claro: remover o elemento humano deixa apenas um gélido vácuo.

O código pode ser a lei na Web 3, mas serão os humanos, com todas as suas falhas, que terão de cumpri-la.

*Traduzido e editado por Daniela Pereira do Nascimento com autorização do Decrypt.co.

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