Imagem da matéria: Bitcoin City em El Salvador: da lei do confisco de terras ao delírio do presidente millennial
Presidente de El Salvador, Nayib Bukele (Foto: Divulgação)

Na segunda semana deste mês, El Salvador foi sede do Labitconf, congresso latinoamericano de bitcoin e blockchain, evento que foi encerrado na praia de Mizata, que fica no município de La Libertad, com um show de fogos de artifício e a entrada triunfal ao melhor estilo popstar do presidente de El Salvador, Nayib Bukele.

Ovacionado pelo público, o presidente se apresentou com o seu tradicional boné virado para trás, vestido de branco e pronto para anunciar aos presentes uma notícia totalmente inesperada: a criação da primeira cidade no mundo do bitcoin, ‘Bitcoin City’.

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O público ali presente partiu ao delírio impressionado com a capacidade do presidente popstar de surpreender a comunidade do bitcoin com ideias cada dia mais ousadas desde o lançamento da Lei Bitcoin no dia 7 de setembro deste ano. Para entender este anúncio, contudo, é preciso antes assimilar a situação econômica do menor país das Américas, um país do tamanho do estado de Sergipe.

Economia de El Salvador

El Salvador enfrenta neste momento uma acelerada deterioração das contas públicas. Com um déficit fiscal superior a 4% do PIB, uma dívida pública que ultrapassa os 85% do PIB e um governo que não para de gastar, o governo salvadorenho precisa urgentemente de uma injeção de capital  para poder cumprir com as suas obrigações orçamentárias.

Diante dessa situação, no começo deste ano, o governo bateu na porta do FMI para pedir um empréstimo de US$ 1,3 bilhões, o que é uma quantidade bastante razoável para um país com um PIB que mal alcança os US$ 25 bilhões.

No entanto, para poder ter acesso a esse empréstimo, o FMI impõe uma série de condições que vão na contramão da política econômica e fiscal do presidente Bukele. Entre outras questões, o FMI e outros órgãos multilaterais têm questionado a escalada autoritária do atual governo, o lançamento do Bitcoin como moeda de curso legal, assim como o acelerado incremento da dívida pública, do déficit e do gasto.

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O governo, por sua vez, tinha afirmado que as negociações com o FMI estavam indo de vento em popa e que em 15 de novembro finalmente chegariam a um acordo para a liberação do empréstimo que o país precisa para poder garantir aos credores da dívida que terá condições de pagar caso as contas públicas apertem.

Diante de tanta especulação, o FMI foi categórico e afirmou: “o empréstimo de US$ 1,3 bilhões não está sobre a mesa, a única coisa que está sendo feita é a revisão do artigo IV, o que acontece todos os anos com os países membros do FMI”.

Anúncios do presidente Bukele

Perante o exposto, e contrário a todas as espectativas, três anúncios tomaram El Salvador por surpresa:

  • Aprovação a toque de caixa de uma lei de expropriações, que faculta o governo a expropriar terra de entes privados caso seja de interesse público;
  • A construção de Bitcoin City, onde os seus moradores desfrutariam de infraestrutura e serviços de primeiro mundo com isenção fiscal quase absoluta, onde apenas se recolheria o imposto sobre o valor agregado (IVA ou VAT em inglês);
  • E o lançamento de títulos em bitcoins no valor de US$ 1 bilhão através da rede Liquid Network, dos quais US$ 500 milhões seriam usados para compra de bitcoin e especulação, e os outros US$ 500 milhões para construção de infraestrutura para a cidade e para facilitar a mineração de bitcoin (ou criptomoeda) através do uso de energia geotérmica.

Nesse meio tempo, e depois do anúncio do lançamento dos títulos (de dívida soberana) bitcoin, os papéis da dívida salvadorenha cotados em dólares caíram mais ainda.

Atualmente os ativos de dívida possuem uma classificação pela agência J.P. Morgan and Chase de Caa1, o que equivale a dizer que os ativos são considerados neste momento ‘tóxicos’. Isso implica que se o governo quiser adquirir nova dívida no Mercado teria que estar disposto a pagar taxas de juros superiores a 15%.

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As peças do quebra-cabeça começam a se encaixar. A lei de expropriação seria utilizada para poder expropriar terra no Leste do país para a construção de Bitcoin City; os títulos em bitcoins substituiriam a ausência do empréstimo do FMI.

Títulos em Bitcoin e promessas na mesa

Mas a ambição na verdade é grande, o governo espera poder captar mais recursos através desse mecanismo, também conhecido tokenização de ativos, e deixaria de lançar papéis de dívida no mercado tradicional onde os intermediários levam um percentual bastante razoável, e passaria a usar redes laterais (sidechains) para captar recursos para o país.

Nas palavras de Samson Mow, diretor de segurança da Blockstream, quem apresentou a ideia ao governo em julho deste ano, não vê porque a ideia não poderia emplacar. E não é só isso. Espera-se que se o primeiro leilão de títulos der certo pode-se captar adiante mais US$ 5 bilhões ou US$ 10 bilhões se o governo achar necessário — ‘o céu é o limite’.

Resta saber se os investidores estariam dispostos a emprestar dinheiro ao governo Bukele (que se encontra com a corda no pescoço) a uma taxa de juros de 6.5% e dez anos de prazo enquanto que o governo é incapaz de captar recursos no mercado tradicional de títulos de dívida soberana a taxas inferiores a 15%.

Até o presente momento o presidente Bukele tem prometido aos salvadorenhos:

  • O lançamento de um satélite;
  • A construção de um segundo aeroporto e um porto no Leste do país;
  • Um trem de alta velocidade que conectaria o país de Leste a Oeste;
  • A construção de um metrô monotrilho em San Salvador; 
  • A ‘Bitcoin City’ e a geração de energia geotérmica para a mineração de criptomoedas num país que ainda importa 20% da energia elétrica que consome.

Vale lembrar que até o presente momento nenhuma dessas promessas têm sido cumpridas. 

Num país onde os seus habitantes não têm acesso a serviços decentes de saúde, moradia, educação e infraestrutura, onde o governo tem sérios problemas para financiar os seus custos, o presidente oferece aos estrangeiros a construção de uma cidade de primeiro mundo onde eles poderão usufruir de tudo aquilo que os salvadorenhos não têm acesso. E os que o têm, tem que pagar um preço muito alto.

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Estamos diante de mais uma loucura do presidente millennial ou às portas de um milagre econômico na América Central?

Sobre o autor

Edwin Lima é salvadorenho residente em Amsterdam, onde trabalha como consultor na área de Business Intelligence e Inteligência Artificial. É mestre em Inteligência Artificial pela Universidade de Amsterdam (UvA) e Bacharel em Ciências da Computação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) em João Pessoa, onde residiu durante sete anos.