Uma sociedade em que o bitcoin é a moeda de troca principal ainda parece uma ideia utópica, mas movimentos que surgem na América Latina estão tentando aproximar um pouco mais esse conceito da realidade.
A comunidade da praia de El Zonte em El Salvador é pioneira na adoção da criptomoeda — algo que começou muito antes do bitcoin se tornar moeda de curso legal no país — e agora um experimento parecido se alastra para o país vizinho, a Guatemala. Ao invés de praia, um lago é o cenário principal dessa vez.
Assim como El Salvador, foi um gringo que deu início ao movimento na Guatemala. O americano Patrick Melder lançou na primavera de 2021 o projeto Lago Bitcoin na cidade de Panajachel, a maior comunidade à beira do lago de Atitlán, o mais profundo da América Central, rodeado por escarpas e três vulcões.
Patrick Melder e sua família visitavam Panajachel todo ano para fazer trabalho voluntário com jovens no Centro Educacional Josué. Inspirado pelo experimento de El Zonte, o americano viu que o bitcoin tinha potencial de ajudar no crescimento daquela comunidade. Afinal, a Guatemala compartilha com El Salvador um cenário socioeconômico parecido: país pobre, com oportunidades escassas de trabalho e altas taxas de corrupção e desbancarização.
Um guatemalteco chamado Eiliazar Ajquijay entrou para o projeto após entender o potencial do bitcoin e começou a disseminar a palavra dentro da comunidade onde nasceu.
“Conheci bitcoin com o Patrick. Ele estava aqui ano passado com uma camiseta escrito ‘bitcoin’ e eu perguntei para ele o que era aquilo… foi aí que tudo começou”, contou Eiliazar em conversa com o Portal do Bitcoin.
Ele explica que, diferente de El Zonte, o experimento em Panajachel ainda está no muito começo, com o foco neste momento em fazer as pessoas entenderem o que é bitcoin. Eles dão aulas sobre a criptomoeda, blockchain e mineração para crianças e adolescentes da comunidade, e também contam com um programa de rádio que fala sobre bitcoin toda segunda-feira à noite.
Um dos trabalhos do projeto é incentivar os comércios locais a usarem a criptomoeda como forma de pagamento. Até o momento, são 65 lugares diferentes em Panajachel que aceitam bitcoin.
“As pessoas [da comunidade do bitcoin] chegam aqui e ajudam com o que podem, uns dão aulas de inglês, outros ajudam a configurar carteiras de criptomoedas, outros doam máquinas de mineração para escolas. Então tudo é muito popular. Estamos acostumados com sistemas e estruturas, mas aqui é um movimento orgânico da comunidade cripto com os moradores”, explica Bill Whittaker, investidor e minerador de bitcoin que ajuda com o projeto de mineração do Lago Bitcoin.
O início da mineração no Lago Bitcoin
A mineração parece ser uma grande aposta do Lago Bitcoin, principalmente a que usa fontes alternativas de energia que não geram custos adicionais para a operação. Eiliazar, por exemplo, viralizou na comunidade cripto ao mostrar como lá se minera bitcoin até mesmo com óleo de cozinha usado.
As primeiras máquinas de mineração de bitcoin (ASICs) de Panajachel, usadas por Eiliazar no seu experimento, foram levadas à Guatemala por duas adolescentes norte-americanas, uma delas filha de Bill.
Quando a filha do bitcoiner estava no último ano do ensino médio e precisava fazer um trabalho final para a escola, procurou ajuda do pai para construir um projeto de mineração de bitcoin sustentável.
“Começamos a olhar para todos os tipos de energia verdes, eólica e solar. Viajamos para a Guatemala para uma visita porque conhecíamos o projeto do Patrick Malder. As meninas tinham algumas ASICs doadas por uma grande empresa dos EUA e elas instalaram a primeira em Guatemala, e isso deu iniciou a mineração no Lago Bitcoin”, conta.
Por lá, Bill conheceu também Eliezer e juntos foram atrás da peça principal do seu plano: um motor a diesel. Quando esse motor foi construído por Rudolf Diesel, relembra Bill, ele era alimentado com óleo vegetal de diferentes tipos que podem ser cultivados na terra — “antes da grande indústria se apossar dessa tecnologia”, cutucou o bitcoiner.
“Depois de muita procura, encontramos sob montanhas desses enormes motores, um gerador a diesel dos anos 70 que já não se fabrica mais. O limpamos e levamos para Panajachel e Eiliazar foi atrás de óleo de cozinha com moradores da comunidade e alguns restaurantes.”
Em cima da caçamba de uma caminhonete, eles conectaram uma ASIC ao gerador, alimentado com óleo de cozinha filtrado, e começaram a minerar bitcoin pela primeira vez.
“Você podia sentir o cheiro de frango no ar, e juro por Deus, 90 segundos depois, começamos a minerar. Estava no telefone com um amigo gritando ‘we’re hashing man!’”, relembra Bill.
Um novo olhar sobre a mineração
Para Bill, o experimento derruba uma narrativa de que toda forma de mineração de bitcoin é danosa ao meio ambiente. Pelo contrário, a atividade pode ser benéfica em casos como o Lago Bitcoin, ajudando a dar um novo significado para algo visto como lixo, altamente danoso se descartado incorretamente.
Porém o benefício principal é que a mineração também pode se converter em renda extra para a comunidade, já que usando o gerador não há custo de eletricidade na atividade.
Embora o projeto ainda seja muito experimental para gerar um lucro significativo, isso pode mudar se a escala da operação for aumentada, e por isso Bill e Eiliazar estão tentando levar mais máquinas à Guatemala.
A ideia por trás disso é que se a comunidade descobrir uma forma de gerar eletricidade para operar as mineradoras, será incentivada financeiramente a fazer isso. O plano é pegar as milhares de ASICs de gerações antigas que estão encostadas por empresas que não conseguem mais lucrar com esses equipamentos.
“Se pudermos ligar a ASIC a um gerador que está funcionando com óleo de cozinha usado, e estamos obtendo esse óleo de graça, é algo que a comunidade vai querer ajudar porque saberá que os lucros gerados com isso voltará para eles. As pessoas então vão se perguntar com o que mais poderão gerar energia. Que tal os restos de comida? E se separarmos os resíduos orgânicos e começarmos a empilhá-los para gerar matéria-prima através de um biodigestor?”, visionou Bill.
Para ele, é assim que uma economia realmente circular se cria para além do uso do bitcoin como moeda de troca: “O desperdício deles está se transformando em energia que está sendo usada para gerar renda para a comunidade.”
O futuro da comunidade cripto da Guatemala
Como o projeto ainda está em estágio embrionário, não se sabe se tudo que o Lago Bitcoin propõe fazer se concretizará, mas na visão dos bitcoiners que atuam na região, a Guatemala parece ter sido feita sob medida para um experimento de economia circular descentralizada.
“Os países desenvolvidos não precisam ser autossoberanos porque há um sistema social para ajudar esses lugares a se manterem. Já em países da América Central, não há a mesma rede de segurança, não há ninguém lá para segurar as mãos das pessoas. Agora é hora de eles se reconstruírem e se livrarem dos roubos que atrasam o crescimento desses países”, diz Bill.
Na visão dele, o bitcoin tem chance de se consolidar em comunidades como Panajachel na Guatemala, e El Zonte, em El Salvador, como base para uma economia que se alimenta sozinha:
“Quando você pergunta como isso vai parecer no futuro, eu imagino uma economia que funciona com uma nova forma de dinheiro que será baseado na soberania, consenso e pessoas se conectando e trabalhando juntas para o bem maior da comunidade. Eu me refiro a isso como espiritualidade digital. O bitcoin nos conecta e filtra muito rapidamente a porcaria que não vale a pena.”
Já Eilizer, que cresceu em Panajachel, que é um dos vários vilarejos ao redor do lago Atitlán, acredita que o projeto tem força e mérito o suficiente para se espalhar nas comunidades vizinhas.
“O bitcoin resolve muitos problemas que temos aqui em Panajachel. Acho que as pessoas vão olhar para nós como exemplo e todo mundo vai se juntar. Temos 17 cidades ao redor do lago e um dos meus objetivos é ir em todas elas e educar as pessoas sobre bitcoin, até que nossa comunidade de mineração seja enorme daqui alguns anos”, vislumbra o guatemalteco.
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