Imagem da matéria: Fé, soberba e total falta de escrúpulos prejudicam o mercado de criptomoedas | Opinião
Foto: Shutterstock

Dois comportamentos extremamente irritantes distanciam os “especialistas” e “empreendedores” cripto do público em geral – e da realidade.

Em primeiro lugar, há uma soberba generalizada no sentido de que quem critica o tema ou não entendeu o caráter revolucionário da tecnologia blockchain ou está sendo pago por quem se tornará obsoleto com essa inovação (por exemplo, os bancos). O “mindset” cripto é quase uma visão metafísica e, após você ser convertido e firmar a sua fé, é seu dever atuar como missionário espalhando as boas novas de um mundo descentralizado. Quem está de fora é tratado com condescendência e qualquer resistência é fútil.

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Em segundo lugar, temos a falta de escrúpulos de empreendedores que afirmam estar “construindo” um mundo novo, mas cujas atitudes divergem de suas falas públicas. Certos atores do setor afirmam seu compromisso com a regulação, mas adotam posturas anticoncorrenciais, fogem de qualquer auditoria independente, recusam-se a recolher impostos (quem paga e recebe salários em cripto recolhe seus tributos?) e a fornecer informações às autoridades ou mesmo a constituir sedes regulares nos países em que atuam.

Surge, assim, uma guerra de narrativas: de um lado, dossiês sobre como a negligência deliberada para conquistar mercado favoreceu a prática de atos criminosos e, de outro, como essas empresas estão ensinando as autoridades a coibir ilícitos. 

Somem-se a esses gurus-apóstolos a enorme quantidade de golpistas que abusam da confiança de investidores, escondendo-se atrás de um jargão incompreensível para prometer rendimentos irreais/surreais. Temos reis, rainhas, príncipes, sheiks e vários outros “nobres” do bitcoin e das criptomoedas, que, cedo ou tarde, viram caso de polícia após ostentarem sua prosperidade e genialidade nas redes sociais.

Um indício clássico da conduta de estelionatários é o desconforto diante de questionamentos. Como você vai gerar esse resultado? No que consiste exatamente a sua atividade? Quais são os riscos? Posso ver documentos que comprovam a existência desses ativos? Por que não consigo sacar meus recursos?

Por isso, não surpreende que quem critica certas condutas ou afirmações e deseja discutir riscos, seja apontado como semeador de “medo, incerteza e dúvida” (FUD, acrônimo para essa sequência de palavras em inglês). Afinal, a afirmação da identidade de um grupo precisa de um vocabulário específico, como bem explica a antropologia.

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Criptomoedas, seitas e golpes

A soberba e a falta de escrúpulos ajudam a criar problemas e potencializam colapsos como o de Terra/Luna, Celsius, Three Arrows Capital, FTX e outros. Ao que tudo indica, o rastro de destruição não parece ter ajudado muitas dessas pessoas a rever as lições aprendidas. Contando com a memória fraca das pessoas, muitos aguardam uma nova primavera em que as cotações dos criptoativos voltem a subir vertiginosamente para profetizar e acusar os incrédulos de proferirem blasfêmias – não raro, é difícil distinguir certos projetos cripto de seitas dignas de documentários. 

Enquanto isso, a apatia das autoridades causa perplexidade, especialmente no Brasil. O surgimento de um “título digital ao portador” e de um “cripto-cabo” substituto ao dólar-cabo, facilitando a sonegação fiscal, evasão de divisas e lavagem de dinheiro. Claro, é uma péssima ideia lavar dinheiro com cripto e ninguém faz ou deveria fazer isso, afinal todas as transações são auditáveis…

Esses fatores, aliados a uma quantidade sem fim de pirâmides e quebras de empresas parecem ter sido insuficientes para convencer o Banco Central, a Receita Federal, o COAF e, em menor medida, a CVM (que chegou a emitir alguns alertas e a punir uma empresa do setor). As inúmeras operações da Polícia Federal demoram a surtir algum efeito ou são sumamente ignoradas.

Hesitantes, as autoridades brasileiras têm dificuldade em afirmar sua competência sobre a matéria e, com isso, deixam de cumprir seu mandato legal, alegando que aguaram a “nova lei”. Os recursos entram e saem do sistema de pagamentos brasileiro por meio de instituições reguladas que não têm incentivos suficientes para dificultar essas transações, afinal, aumentam suas receitas.

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Quantas inspeções em instituições de pagamento ou outras instituições reguladas já foram realizadas para aferir a qualidade dos controles e sua adequação aos maiores riscos envolvendo essas operações? De quantos escândalos e golpes ainda precisamos para que uma supervisão mais próxima desse setor seja realizada?

Pode anotar: pouco ou nada vai mudar para melhor após a aprovação do PL 4.401/2021 em pelo menos um ano, arrisco dizer até dois. Quem lava dinheiro via cripto continuará a fazê-lo e prestadores de serviços de ativos virtuais escaparão da supervisão utilizando as lacunas e ambiguidades da norma. Pelo contrário, em vez de fomentar o mercado nacional, a lei irá colocar as empresas locais em posição desfavorável em matéria concorrencial em comparação com seus competidores globais. 

Leis e sociedade

Meu argumento nesse texto não é geração irresponsável de “medo, incerteza e dúvida” ou “clamor por sangue”, mas sim um convite à abordar as oportunidades e riscos desse mercado com lucidez. Não precisamos de uma nova lei, vaga, imprecisa e que demorará uma “eternidade” para surtir algum efeito prático, para proteger os investidores e assegurar que os empreendedores desse setor forneçam informações verdadeiras, adequadas e suficientes para que você tome suas decisões.

O direito penal não inibe a prática de crimes e ninguém educa suas crianças apenas na base da chibata. Leis não mudam nenhuma sociedade – é preciso calibrar os incentivos dos agentes econômicos, dos atores sociais.

Infelizmente, poucos vêm a público criticar a inércia das autoridades brasileiras ou dizer explicitamente que há um câncer na criptoeconomia, que precisa ser extirpado para que as genuínas vantagens das tecnologias que lhe são subjacentes encontrem casos de uso legítimos e nos ajudem a superar burocracias, custos elevados de intermediação, transparência em transações (financeiras ou não) e uma economia realmente global em termos de infraestrutura de sistemas de informação. 

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Associações e empresas do setor estão fazendo a sua parte, procurando aproximar o Estado do tema, afinal, alguma lei é melhor que nenhuma e, pelo menos, alguma delegação de competência pode ajudar a convencer as autoridades a agirem.

Enquanto isso, é preciso desmascarar aqueles que tornam a criptoeconomia uma farsa. Se você investe em criptoativos, tenho um pedido: exija do seu prestador de serviços a comprovação de que seus recursos existem e não evaporaram em algum investimento de alto risco ou estão sendo utilizados para construir castelos de cartas que irão desmoronar inevitavelmente.

Estude os riscos dos projetos nos quais investe ou está envolvido e faça perguntas, incomode, irrite. É seu direito! Faça isso para evitar ser mais um credor na fila de uma empresa que venha a quebrar ou, o que é mais comum, uma pessoa que simplesmente perde o contato com quem lhe prometeu sonhos e independência financeira e terá que ir à delegacia e contratar advogados para descobrir que não há nada a fazer.

Sobre o autor

Isac Costa é sócio de Warde Advogados e professor do Ibmec e do Insper. Doutorando (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista da CVM, onde também atuou como assessor do Colegiado.